Zona de descomforto: sobre viver no exterior, e as 10 lições mais importantes que o estrangeirismo me ensinou
Artigo originalmente escrito por Alex Anton e publicado em 2013 na Harvard Business Review Brasil.
Foram 73.680 horas, 3.070 dias, ou 8 anos e 5 meses. Foram não, ainda são, porque todavia não tenho endereço fixo no Brasil e continuo na estrada. Bem, mas serão, porque a passagem de volta já está marcada e contratos de trabalho já foram assinados em território tupiniquim. Enfim, quase 9 anos de estrangeirismo estão chegando ao fim, e como o fim de qualquer ciclo vale parar, refletir e reconhecer o que aprendi de mais importante nesse período tão especial e transformador da minha vida. Cabe também se (re-)emocionar — rir e, por que não, chorar — com as passagens mais marcantes dessa viagem longa, linda, saborosa, mas também por vezes fria, solitária e confusa, que hoje define quem sou eu.
Saí do Brasil pela primeira vez em 2003. O destino era Potsdam, na Alemanha, e a justificativa, um estágio acadêmico num instituto de pesquisa de ponta. Foi a recompensa pelo intercâmbio de high school, aqueles que a gurizada faz durante o segundo grau, que tanto queria realizar cinco anos antes mas que não teve a aprovação dos meus pais. A explicação racional era uma experiência profissional que pudesse enriquecer meu currículo, a emocional, e mais autêntica, era a realização de um sonho de viver e viajar pelo mundo, mesmo que fosse por apenas 3 meses. Foi o primeiro grande passo nessa jornada que culminou com dois anos de estudos, e muito aprendizado, num outro lugar grande demais pra caber nos sonhos do moleque de 20 anos que embarcou medroso e com lágrimas nos olhos naquele vôo para a Alemanha: o mestrado em business na Harvard Business School.
Entre chegar em Potsdam em 2003 e receber o canudo de Harvard em 2013 passaram-se uma série de eventos e experiências que me fazem sentir tanto orgulhoso quanto sortudo. Orgulhoso por reconhecer que foi fruto de suor — físico e mental — e muito otimismo; sortudo por também reconhecer que muito do que me aconteceu não estava no meu controle, e que sem o apoio de pessoas e instituições que guardo na memória e no coração, não teria acontecido. Bom, corro o risco de transformar este texto numa autobiografia narcisista e detalhada, então peraí, a ideia aqui é compartilhar o que experienciei e as lições ali aprendidas, imaginando que esse aprendizado possa ser traduzido em ideias de aplicação quase universal. Ideias que podem lembrar você, leitor, e eu mesmo, das riquezas, belezas e potencial que libertamos quando gastamos energia, tomamos coragem, respiramos fundo e saímos da nossa zona de conforto. Ideias que também me lembram o quão acessível, inspirador e infinitamente criativo é o mundo. E a vida.
1. Pare de se enrolar e vá logo! O universo e, principalmente, você, farão que tudo dê certo uma vez que a decisão de partir tenha sido tomada e você se veja independente e sem amarras para fazer acontecer. Parafraseando o navegador brasileiro Amyr Klink, “pior que não terminar uma viagem é nunca partir”. Faz sentido, mas como é difícil dar o primeiro passo. Pessoalmente, o momento mais difícil, aquele que me faz tremer nas bases e repensar o porquê de tudo isso é sempre no check-in e despedida da família no aeroporto. Ah, como dói! E com isso, infelizmente, a gente não se acostuma. Todas as vezes o mesmo aperto no peito, a mesma energia magnética me prendendo a minha terra e aos meus. Mas uma vez que o avião decola, livre e independente eu vou. Os medos e ansiedades que ora me assombravam se transformam em oportunidades únicas de descobrimento. Tudo parece fluir, me sinto presente, forte e capaz de encarar qualquer desafio, e mesmo o que dá errado se transforma numa boa história para contar.
2. Eu v3.0. Longe da zona de conforto voltamos aos valores mais básicos, e nos reinventamos muito mais facilmente. Essa mesma energia magnética que me prende ao único lugar que realmente posso chamar de casa, ou também de zona de conforto, é também aquela que me prende a rótulos, limitações e paradigmas impostos por mim e pela sociedade ao meu redor. Longe do meu contexto é muito mais fácil experimentar estilos de vida, pessoas e opções profissionais que de outra forma não fariam parte do que nos é “possível”. Por exemplo, quando embarquei para Londres em 2004 tinha uma vida relativamente fácil e confortável em Florianópolis, típica de um jovem de classe média. Estava longe da minha independência financeira e trabalhar duro significava estudar e dar conta do estágio em iniciação científica. Em Londres, no entanto, rapidamente entrei em outra frequência: trabalhava de garçom, barman, lavador de pratos e ainda entregador de cartas em até 3 lugares diferentes no mesmo dia. Pagava minhas contas e comprava minha comida, voltando a um estilo de vida tão básico que questionei se realmente precisava comer carne, cujo custo era altíssimo em relação a uma dieta vegetariana. Desde então me tornei vegetariano, e carrego na bagagem essa forma de enxergar o mundo: examinando o que realmente preciso e o que naturalmente assumo como “normal” dados os valores e normas da sociedade.
3. O mundo está de portas abertas! Existem inúmeras possibilidades de estudar e viajar no exterior de forma barata. No geral, qualquer trabalhador da classe média pode, com esforço e planejamento, estudar, trabalhar ou viajar em praticamente qualquer país do mundo. Também achava que viajar era um privilégio dos endinheirados, ou de gente que rala muito e após 10 anos de suor consegue passar uma semana em Nova Iorque. Não é. Com curiosidade e determinação é possível ir muito longe, e gastando pouco. EUA e Europa são lugares caros para se viajar. Mesmo assim é possível dormir em albergues com quartos coletivos a $20–35/noite; viajar de trem ou ainda mais barato, de ônibus; e comer a comida local comprada em mercados e servida em parques, praças, museus ou no próprio albergue. Em lugares mais distantes e por isso mais caros de chegar, como a Ásia, um viajante econômico consegue sobreviver com $10 dólares por dia, incluindo cama e comida. Uma vez na estrada, oportunidades para economizar ou fazer uns trocados podem aparecer: trabalhar no albergue em troca de cama e café da manhã, dar aulas de inglês ou português, trabalhar a distância como freelancer (principalmente se você manda bem em TI), e por aí vai.
Já estudar fora exige mais pesquisa e planejamento, mas a experiência será mais duradoura e impactante. São inúmeras as possibilidades de bolsas de estudo, principalmente para mestrado e doutorado, para brasucas no exterior. Histórico escolar forte e atividades extracurriculares que enriqueçam o c.v. são muito importantes para se conquistar uma vaga em universidades de primeira linha, mas com esforço e visão qualquer um pode chegar lá. Eu não sabia disso, e aprendi através da tentativa e erro. Fui felizardo por ter sido aceito para meu mestrado no Canadá, em 2006, com uma bolsa que cobria os custos da universidade e meus gastos com manutenção básica: tinha uma cama confortável e me alimentava sempre em casa ou carregava marmitas (sempre sem carne ;-)), mas não sobrava muito. Com o tempo descobri várias outras oportunidades de aumentar a receita: concorri a prêmios e bolsas de caráter meritocrático e dobrei meu salário! Dicas de como encontrar essas oportunidades dariam um livro, mas se tivesse que compartilhar apenas uma, seria: pesquise as universidades que sejam fortes na sua área de experiência ou interesse, listando 10 escolas em ordem de prioridade; vasculhe o site de cada universidade em busca de scholarships para international students, e entre em contato com o admissions office, eles poderão esclarecer pontos que em princípio parecerão ultra-confusos. Uma vez que esse mapa inicial esteja pronto, procure professores, amigos ou conhecidos que tenham estudado fora, apresente seu plano, e peça feedback. A partir daí, com um pouco de suor e paciência, acredite, tudo dará certo!
4. O passaporte tupiniquim. Brasileiros são recebidos com muita alegria em todo o mundo. Talvez nossos hermanos argentinos torçam um pouco o nariz, mas mesmo assim o farão com um sorriso no rosto; o resto do mundo, porém, abrirá um sorriso caloroso ao ouvir a palavra Brasil. Interessantemente, quanto mais longe do país, maiores esses sorrisos. Há pouco o passaporte brasileiro me descolou dois mergulhos gratuitos na Tailândia e uma refeição autêntica e calorosa com uma família no Mianmar. Também somos sortudos por precisarmos de visto para poucos países: indianos e chineses, por exemplo, não entram na Europa continental ou Reino Unido sem visto de turista. Ouvi de uma indiana que quando ela escutou a palavra Brasil sair da minha boca imaginou cores, sorrisos, música e muita alegria. Que assim seja!
5. Viajar e morar no exterior nos torna mais criativos!
A exposição a formas diferentes de interagir e interpretar a vida e o mundo nos livra de preconceitos e nos torna mais abertos a aceitar o novo ou o diferente. Essa exposição também mexe com a imaginação, produzindo ideias e possibilidades antes limitadas por preconceito ou medo de errar. A interação com outros povos e culturas nos torna mais criativos, e a ciência, felizmente, valida esse ponto. O professor William Maddux, da escola de negócios europeia INSEAD, estudou a influência de experiências internacionais no perfil de altos executivos, e suas conclusões são extremamente encorajadoras para aqueles com sede de mundo. Ele afirma “seu nível de criatividade aumenta significativamente se você estiver imerso em experiências locais e, particularmente, idiomas. Existe uma associação muito forte entre a habilidade de falar idiomas diversos e criatividade. Portanto, indivíduos que falam dois ou três idiomas são, em geral, mais criativos.” O mesmo estudo relaciona criatividade a empreendedorismo, o que torna o pacote ainda mais atraente!
6. & flexíveis, e empáticos, e resilientes
Além de criatividade, outros aspectos universais de cidadania e liderança são flexibilidade, empatia e resiliência. No estrangeiro nunca pude me dar ao luxo de exigir que as coisas funcionassem, ou as pessoas pensassem e agissem da maneira que eu gostaria ou achava certo. Eu era o diferente, e assim sempre fui forçado a questionar se o que eu em princípio achava estranho era universalmente errado ou apenas diferente. Por exemplo, na Suíça tive que me adaptar a confirmar a presença em churrascos e jantares de amigos com 4 semanas de antecedência, e aprender que não aparecer num desses eventos confirmados é ofensa grave. Na Indonésia, tive que aceitar que reuniões marcadas e confirmadas para o horário X horas não começam antes de X + 30 minutos. Fora da zona de conforto seguimos a teoria Darwiniana de “adaptar-se ou morrer”. Como consequência, naturalmente nos tornarmos mais empáticos com o outro, desenvolvendo a capacidade de se sentir no papel de outra pessoa, e assim entendê-la e respeitá-la mais facilmente. E finalmente, resiliência, a capacidade de persistir e superar desafios. Independentes e longe daqueles que normalmente nos ajudariam, ou daqueles que diriam que não adianta nem tentar porque é difícil demais, ou ainda das nossas próprias desculpas e máscaras, reconhecemos rapidamente que cabe a nós mesmos persistir e, por que não, aspirar cada vez mais longe. Quando terminei o mestrado em Winnipeg, no Canadá, me mudei para Toronto e “testei” como seria fazer o doutorado na University of Toronto, a melhor do Canadá e entre as 20 melhores do mundo. Tinha sido aceito e premiado com uma bolsa de estudos competitiva, e isso era motivo de orgulho para mim e minha família. O problema é que esse “teste” deu negativo; eu não gostei da rotina do laboratório e não me imaginei feliz pelos próximos 4 anos. Decidi encarar o mercado de trabalho e buscar oportunidades na indústria de alimentos no Canadá. Apliquei para mais de 100 empregos, fiz 4 entrevistas, e nada. Nenhuma das vagas era o emprego dos sonhos, mas seriam boas o suficiente. Após um final de semana com amigos em Montreal me bateu a luz: por que eu estou buscando oportunidades apenas aqui se existe o mundo inteiro? E na mesma noite de domingo vasculhei a Internet e me candidatei à vaga de trainee na empresa de alimentos mais respeitada do mundo, no seu país de origem: Nestlé, na Suíça. Já que as opções mais fáceis e acessíveis, e também mais medíocres não estavam dando certo, por que não tentar o que existe de melhor? Na segunda-feira de manhã recebi uma ligação da recrutadora marcando uma entrevista por telefone. Passei pela segunda peneira, e em seguida veio o convite para participar do processo seletivo completo em Vevey, na Suíça. Só a perspectiva de uma semana gratuita na Europa já fez com que tudo valesse a pena, mas o melhor ainda estava por vir. Deu certo, e a consequência foram quase 3 anos de aprendizado no coração da Europa!
7. Aspirações comuns. No nível mais primitivo, todos dividimos os mesmos sonhos, medos, preconceitos e aspirações. Dos meus colegas de apartamento em Londres — imigrantes ilegais suando para mandar uns trocados a suas famílias no Brasil ou na África — a meus colegas mais abastados de Harvard, cujas famílias exibem patrimônio pra lá dos 12 dígitos, concordo com o psicólogo Abraham Maslow que todos buscamos segurança, aceitação social, respeito num nível mais avançado, impacto e sensação de contribuição a algo maior. Claro, esses elementos se manifestam de forma diferente em pessoas distintas, mas a mensagem é que todos estamos aqui atrás da mesma felicidade que vai além do que é tangível e material. Quanto mais conhecemos povos diferentes, mais nos sentimos parte de um mesmo universo, e problemas que antes pareciam distantes das nossas vidas, como a poluição dos rios na China, por exemplo, passam a fazer parte da nossa agenda. Afinal, reconhecemos que tudo é interdependente, e o que afeta uma parte do planeta gera consequências para todo o demais.
8. Questionar & aprender: autoconhecimento. Não há opção: lá fora questionamos o tempo inteiro, e isso reflete em autoconhecimento aumentado. Tudo é diferente e por sermos forçados a nos adaptar, passamos a não julgar o diferente como simplesmente “errado”, e sim a questionar o porquê dessa diferença. Além de flexibilidade, como mencionado acima, esse questionamento frequente o leva a também interrogar o que lhe deixa mais feliz, quais são seus pontos fortes (e fracos), e o que gostaria de mudar no mundo. Essa busca não é fácil ou romântica, e o resultado de ter seu autoconhecimento alavancado pode ser uma mudança radical de vida ou carreira. Foi assim que a minha transformação aconteceu: de cientista a gerente de projetos, coach, e a um profissional com interesses diversos que se nega a ser rotulado com apenas um título. A busca é contínua, e o processo sempre é mais interessante do que o resultado final.
9. Todos os sentidos acordados. O escritor inglês Edwin Abbott Abbott escreveu em seu brilhante livro de 1884 Flatland: A Romance of Many Dimensions uma analogia que acredito refletir bem o que é viver no exterior:
A esfera resolve viajar e conhecer um lugar chamado Flatland, ou Terra Plana. Lá tudo existe em apenas duas dimensões, e a esfera assusta-se ao perceber que todos a percebem como apenas um círculo, e não uma esfera com 3 dimensões: altura, largura e profundidade. Frustrada, ela tenta explicar para o quadrado o que é o mundo em 3 dimensões, mas ele não entende. Já impaciente, a esfera finalmente resolve trazer o quadrado consigo na sua viagem de volta ao mundo 3-D, para que enfim ele possa ver e sentir o que ela insiste em explicar. O quadrado, ao chegar no mundo 3-D, fica perplexo: “um pavor indescritível tomou conta de mim. Em princípio foi a escuridão; depois uma sensação de estar enxergando sem realmente ver; eu vi espaço que não era espaço; eu reconheci a mim mesmo, e não me reconheci. Quando achei minha própria voz, gritei alto “isso é loucura total ou o Inferno!”. “Não é nenhum dos dois”, calmamente respondeu a esfera, “isso é conhecimento, é o mundo em 3 dimensões: abra seus olhos novamente e tente olhar com calma.” “Eu olhei e, magicamente, um novo mundo se descortinou.”
Viver no exterior é sim cansativo, mas é viver em 3 dimensões frequentemente. Quase não existe rotina já que o potencial de descoberta e aprendizado é próximo ao infinito. Viver em 3-D é estar presente, sentindo o cheiro do ar, o sabor dos alimentos, e o prazer da descoberta e do aprendizado. Por outro lado, na zona de conforto é muito fácil deixarmos a rotina, os compromissos, ou até mesmo o tédio tomar conta do nosso universo e reduzi-lo àquele encontrado em Flatland.
10. Você, autor. Viver no exterior é sentir, todos os dias, que estamos escrevendo nossa própria história. É tomar decisões que são mais guiadas pelo coração e pela razão do que pela opinião dos outros. É acumular riqueza intangível porque amontoar bens materiais desnecessários pode lhe dar dor de cabeça na próxima mudança de cidade ou país. É escrever e reescrever sua história, ciente de que você é autor dela, e não apenas um produto do seu passado.
Ufa, a lista foi longa! Ainda, essas lições se conversam entre si uma vez que na vida tudo acontece de forma integrada. Antes de fechar o texto, no entanto, vale mencionar os motivos que justificam minha volta, já que defendo fortemente as benesses de morar no estrangeiro. Volto porque acredito que no Brasil poderei ter mais impacto, ver mais valor no meu trabalho, e manter e estabelecer relações humanas que também definem quem eu sou. Sinto-me privilegiado por encontrar um país que busca e valoriza profissionais com experiências similares às que passei, e honestamente, também sinto a obrigação de compartilhar essas experiências, e continuar aprendendo, com os meus. Os planos de curto prazo estão bem definidos, mas o que virá depois ainda está a ser escrito. Em português.